Samael: Entre Anjo da Morte e Príncipe das Trevas

Origens Míticas e Judaico-Cristãs de Samael

Samael (em hebraico סמאל, às vezes transliterado Sammael ou Samael) é uma figura complexa que emergiu na tradição judaica e, mais tarde, foi reinterpretada em contextos esotéricos. Seu nome é geralmente traduzido como “Veneno de Deus” – uma etimologia encontrada em fontes rabínicas antigas. Alguns comentadores também relacionam Samael à raiz hebraica de “cegar”, pois ele seria o anjo que “cega os olhos dos seres humanos” para confundi-los entre o bem e o mal. Essas duas leituras do nome – veneno e cegueira – já indicam a natureza ambígua de Samael: um agente divino de destruição e acusação, cuja ação pode ser vista tanto como um mal necessário quanto como expressão da justiça implacável de Deus.

Nas escrituras canônicas, Samael não é mencionado explicitamente pelo nome. Porém, em textos do período do Segundo Templo (entre os séculos V a.C. e I d.C.) e na literatura rabínica posterior, sua identidade ganha forma. Ele passa a ser descrito como um arcanjo sombrio com múltiplos papéis, frequentemente associado à figura de Satã (o adversário) mas com características próprias. Em diversas passagens do Talmude e Midrash, Samael aparece como acusador celeste, sedutor e anjo destruidor. Ou seja, ele é o anjo que incita os homens ao erro, depois os acusa de seus pecados diante de Deus, e por fim executa a punição como Anjo da Morte. Esse ciclo – tentação, acusação e destruição – é resumido pelos sábios: “Eu criei o mau instinto e criei a Torá como remédio”, indicando que o papel destrutivo de Samael (identificado ao Yetzer Hara, o impulso maligno) faz parte do plano divino para testar e purificar a humanidade.

Importante notar que, na teologia judaica clássica, Samael não era visto inicialmente como um inimigo que age fora do controle de Deus. Ao contrário, ele integra a corte celestial e executa funções sombrias a serviço do Altíssimo. No Livro de Jó, por exemplo, o “Satã” que acusa Jó age com permissão divina – e tradições posteriores passaram a associar esse Satã a Samael. Assim, embora muitas de suas funções se assemelhem à noção cristã de Satanás (o Diabo personificado como rebelde), em contextos judaicos Samael não é necessariamente maligno em essência, já que ao destruir os pecadores ele está cumprindo o julgamento justo de Deus. Esse ponto é crucial: Samael pode ser entendido tanto como inimigo quanto como executor da vontade divina, dependendo da perspectiva. Ele “mata” e causa sofrimento – mas somente àqueles que, segundo a teologia, merecem tal destino, resultando paradoxalmente em um bem maior (a eliminação do mal).

Nos textos apócrifos e pseudo-epigráficos do período intertestamentário, Samael ganha contornos ainda mais vívidos. No Livro de Enoque (Enoque I, provavelmente do séc. II a.C.), ele é citado como um dos anjos caídos que corromperam a humanidade. Embora não lidere a rebelião (esse papel cabe a Samyaza), Samael figura entre os “Vigilantes” que descem à Terra para tomar esposas humanas, transgredindo a ordem celestial. Já na Apocalipse Grega de Baruch (texto apócrifo possivelmente do séc. I d.C.), Samael aparece como o grande vilão: é ele quem teria plantado a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal no Éden e, após ser punido e expulso por Deus, vinga-se ao tentar Eva na forma da serpente. Essa lenda apócrifa identifica explicitamente a serpente do Gênesis com Samael – algo que também é ecoado em midrashim posteriores, onde se diz que “Samael veio montado na serpente” para seduzir Eva. Nessa visão, Samael é o primeiro tentador, inaugurando a queda da humanidade e se tornando associado ao pecado original.

Após a queda no Éden, as tradições judaicas creditam a Samael envolvimento em vários episódios bíblicos, sempre como o adversário oculto por trás dos obstáculos enfrentados pelos justos. Comentários midráshicos contam que Samael foi o anjo que lutou contra Jacó durante a noite, antes deste receber o nome de Israel. Essa luta (Gênesis 32) é interpretada alegoricamente: Jacó, ancestral do povo de Israel, enfrenta o anjo guardião de Esaú – e esse anjo seria precisamente Samael, tentando deter a bênção de Jacó. Por isso, Samael é chamado também de “príncipe de Edom” (Edom sendo Esaú e também um código para Roma) e arqui-inimigo de Israel, o patrono celestial dos impérios que oprimem o povo judeu. Essa associação ganhou força após a destruição do Segundo Templo pelos romanos (70 d.C.): Samael passou a ser visto como o anjo regente de Roma e, por extensão, uma personificação do poder pagão (e mais tarde cristão) hostil ao judaísmo. Em textos judaicos medievais, chega-se a dizer que Samael é o sar (príncipe/guardião) da própria Cristandade – uma forma velada de demonizar a dominação estrangeira e as perseguições religiosas sofridas pelos judeus na Europa. Aqui percebemos um fator político claro na evolução do mito: Samael foi sendo moldado como símbolo dos inimigos históricos de Israel, reforçando a ideia de um adversário cósmico que atua através de impérios e nações opressoras.

Samael na Literatura Rabínica: Anjo, Acusador e Anjo da Morte

Diversos trechos do Talmude e do Midrash compõem um mosaico do papel de Samael no drama cósmico. Ele é chamado de “Príncipe dos Demônios” e até mesmo de “o Grande Príncipe do Céu” – uma aparente contradição que reflete sua dupla natureza. Por um lado, Samael é descrito liderando legiões de espíritos malignos, à frente de um exército de demônios e “satans” (acusadores). Por outro, ele ainda é contado entre os príncipes celestiais servindo a Deus. No Pirkei deRabbi Eliezer (um midrash do século VIII), há uma passagem curiosa: Samael é retratado com doze asas, ao passo que os anjos superiores habituais têm seis – isso indicando sua posição exaltada entre as hostes celestes, apesar de ser o chefe dos anjos acusadores. Em outras palavras, Samael ocupa o topo da hierarquia do “Outro Lado” (Sitra Achra), mas esse “outro lado” continua sob a soberania do Criador.

Nos relatos rabínicos, todas as lendas associadas a Satanás acabam por se referir igualmente a Samael. Assim, histórias de tentação, pecado e morte frequentemente o envolvem. Foi dito, por exemplo, que Samael desceu com um séquito de anjos caídos para corromper a humanidade nos primórdios. Ele é creditado como o plantador da vinha no Éden – identificando-o ao fruto proibido que levou Noé à embriaguez e, por analogia, ao fruto da árvore proibida do qual Adão e Eva comeram. De fato, certos textos chegam a afirmar que o próprio Samael era a Serpente ou que “se vestiu” da serpente para enganar Eva. Essa serpente/Samael teria tido relações com Eva, e Cain seria fruto dessa união profana – uma ideia presente no Targum Yerushalmi e em comentários posteriores, fazendo de Cain não um filho de Adão, mas sim de Eva com o anjo do mal. Tais narrativas, obviamente, estão fora do cânone bíblico, mas eram parte do rico folclore aggádico que tentava explicar a origem dos demônios e do mal no mundo.

Outros midrashim vinculam Samael a momentos críticos da história bíblica: na Akedá (o Sacrifício de Isaac), ele teria sido o acusador que tentou dissuadir Abraão de cumprir a ordem divina e, quando falhou, correu para contar a Sara que Isaac fora morto, o que causou o choque que levou à morte de Sara. No Êxodo, quando os israelitas estão para atravessar o Mar Vermelho, é Samael quem aparece diante de Deus como prosecutor, apontando os pecados de Israel para questionar se mereciam ser salvos. Na época do rei Davi, alguns identificam Samael como o “Satã” que incitou Davi a fazer o censo proibido do povo (2 Samuel 24:1 e 1 Crônicas 21:1) – mais uma vez atuando como instigador ao erro para depois acusar. Há também a lenda de que Samael entrou no rei Manassés (um dos reis mais ímpios de Judá) e o levou a serrar o profeta Isaías ao meio. E, numa elaborada poesia litúrgica sobre os Dez Mártires (sábios judeus executados pelos romanos no século II), diz-se que Samael vangloriou-se de derrotar Miguel (o anjo patrono de Israel) quando conseguiu que o decreto fosse cumprido – ou seja, interpretou-se a tragédia histórica como uma vitória temporária do acusador Samael sobre o defensor celestial, Miguel.

Mesmo com tanto poder atribuído a ele, Samael não deixa de estar sob o julgo divino. Uma passagem significativa afirma que no Dia da Expiação (Yom Kipur), Israel não teme a atuação acusatória de Samael. Nesse dia sagrado, pelos ritos de arrependimento e jejum, os pecados do povo são espiados e o “Promotor Celestial” fica sem base de acusação. Segundo um midrash, no Yom Kipur o próprio Samael se torna um defensor, advogando pelo perdão de Israel ao ver sua sinceridade. Essa imagem reforça que, em última instância, Samael só pode acusar onde haja culpa – se há expiação e justiça, seu poder é anulado.

Em resumo, na literatura rabínica até o início da era medieval, Samael é uma figura ambígua, necessária na economia divina. Ele incorpora o mal – é chamado de “o princípio do mal” que traz calamidades a Israel – porém esse mal não é absoluto, mas sim instrumental. Ele age como anjo do julgamento para que Deus não precise “sujar as mãos”, por assim dizer, com atos de morte e destruição. Essa ideia transparece em comentários que quase vêem Samael como a “mão esquerda de Deus”, executando sentenças que emanam, em última análise, da vontade divina. Não por acaso, alguns mestres chegam a afirmar que o mal não tem existência própria – é uma sombra projetada pela luz divina. Nesse sentido, alguns cálculos místicos notaram que a soma numérica dos nomes Samael + Lilith equivale ao valor exato da palavra Torah (Lei), enquanto a gematria reduzida desses mesmos nomes soma 26, igual ao valor do nome sagrado YHVH. Seria um indicativo de que, por trás da dupla demoníaca Samael-Lilith, está oculto o Nome do Próprio Deus. Em outras palavras, até o lado negro (Samael e sua consorte) estaria misteriosamente incluído na unidade divina – um mistério teológico que os cabalistas mais tarde explorariam com profundidade.

Samael e Lilith: Consorte das Trevas e Adversário de Israel

Não se pode falar de Samael sem mencionar Lilith, a célebre demônia feminina da noite. As lendas medievais, apoiadas em sugestões já presentes no Talmude, fazem de Lilith a companheira (esposa) de Samael. Mas como essa união profana se formou? Segundo o Alfabeto de Ben Sira (um texto satírico medieval que consolidou o mito de Lilith), Lilith foi a primeira esposa de Adão, criada junto com ele. Por não se submeter a Adão, ela rebelou-se e fugiu do Éden, tornando-se um espírito maligno. É nessa condição que, conforme a lenda, Lilith encontra Samael e se torna sua consorte, “a esposa do Grande Demônio”. Juntos, Samael e Lilith formam o casal infernal por excelência, unindo o princípio masculino e feminino do mal. Diz-se até que dessa união nasceram miríades de demônios – por isso Lilith é chamada “mãe de demônios”.

Textos cabalísticos expandiram esse conceito. O cabalista Isaac ben Jacob ha-Kohen, em meados do século XIII, escreveu o tratado Sod Ha-Emanação Ha-Smale (“Sobre a Emanação da Esquerda”), no qual Samael e Lilith aparecem como rei e rainha do lado maligno da criação. Isaac ha-Kohen é provavelmente o primeiro a sistematizar essa mitologia dualista dentro da Kabbalah: ele elevou Samael e Lilith a princípios do mal – praticamente antíteses das sefirot sagradas – o que não ocorria explicitamente antes dele. Antes, Lilith e Samael já eram figuras folclóricas temidas, mas não eram entendidos como “anti-Deus” nem como necessários um ao outro. Foi a partir do século XIII que o par Samael-Lilith cristalizou-se no imaginário esotérico judaico.

No Zohar (obra principal da mística judaica, compilada no século XIII), essa parceria é mencionada. O Zohar identifica Lilith como a mulher da “outra margem”, a feminina impura que seduz os homens e gera espíritos malignos. Em algumas passagens, insinua-se que Lilith une-se a Samael quando este tem um momento de afastamento da Shekinah (a Presença Divina feminina). A união de Samael com Lilith seria, portanto, uma caricatura infernal do sagrado: assim como na esfera divina Deus se une à Shekinah, no lado das Qliphoth (cascas impuras) Samael se une à “Rainha das Trevas” Lilith. Essa simetria invertida reforça a ideia de que o mal é uma imitação grotesca do bem, sustentando-se dele de forma parasitária. De fato, vários cabalistas descreveram Samael e Lilith como as “cascas” (Qliphoth) correspondentes à sefirá de Geburah (Julgamento/Severidade) e Binah, respectivamente – eles seriam a força de julgamento excessivo e sombrio, divorciada da compaixão, e a escuridão estéril oposta à vida.

Lendas tardias ainda multiplicaram a família de Samael. No folclore místico, fala-se das “Quatro esposas de Samael”, chamadas Lilith, Naamá, Eisheth Zenunim (uma espécie de personificação da prostituição sagrada) e Agrat bat Mahlat. Cada uma corresponderia a diferentes manifestações do feminino impuro em quatro mundos metafísicos. Lilith, nesse esquema, seria apenas uma (a principal) dessas rainhas demoníacas, reinando ao lado de Samael sobre legiões de espíritos do mal.

Mesmo que os detalhes variem, o denominador comum é que Samael passou a ser visto, na Cabala medieval, como o consorte de um poder feminino maligno (geralmente Lilith). Essa parceria simbolizava a completa antítese do casal divino (representado por Tiféret e Malchut na Árvore da Vida, ou na linguagem mítica, Deus e Sua Shekinah). Assim, o mal não é solitário: ele se reproduz, se multiplica, tem “família” e descendência – uma metáfora para dizer que o mal prolifera e se perpetua no mundo, exigindo constantes atos de retificação (tikkun) por parte dos justos.

Do ponto de vista simbólico, ao casar Samael com Lilith, os cabalistas estavam resolvendo um dilema teológico: se Deus é absolutamente bom, de onde vem o mal? A resposta mítica foi personificar o mal em uma anti-sefirah (uma “emanacão da esquerda”) na qual residem um anti-Deus (Samael, às vezes até chamado de “outro deus”) e uma anti-Deusa (Lilith). Desse modo, podia-se falar do mal e de seus efeitos quase como um universo paralelo, sem cair numa heresia dualista completa – pois, no fim, esse casal sombrio ainda está sujeito à soberania final de Ein Sof (o Infinito divino). De fato, a tarefa mística central segundo Isaac Luria (séc. XVI) é resgatar as centelhas de santidade aprisionadas nas Qliphoth (cascas do mal), enfraquecendo assim Samael e Lilith até que ambos sejam aniquilados ou reintegrem-se à luz divina no fim dos tempos.

Samael na Cabala Hermética e Grimórios Medievais

A influência da figura de Samael transpôs os limites do misticismo judaico e adentrou o ocultismo ocidental cristão a partir do final da Idade Média e Renascimento. Grimórios e textos mágicos latinos começaram a referenciar anjos e demônios do universo judaico, e Samael aparece em alguns desses contextos. Por exemplo, o chamado “Tratado Mágico de Salomão” (um texto mágico medieval) lista Samael como um dos sete arcanjos planetários – associado tradicionalmente ao planeta Marte e à terça-feira. De fato, em diversas listas ocultistas de correspondências, Samael é o nome dado ao Arcanjo regente de Marte e da esfera de Geburah (Severidade) na Árvore da Vida. Marte, sendo planeta da guerra e destruição, se coaduna com a natureza severa e punitiva de Samael. Ocultistas renascentistas como Cornelius Agrippa (1533) mencionam um arcanjo do planeta Marte chamado Zamael ou Samael. Mais tarde, ordens esotéricas como a Golden Dawn (final do século XIX) também atribuíram Geburah (a quinta Sephirah) ao arcanjo Samael – embora muitas vezes prefiram o nome variante Camael ou Khamael para dissociar um pouco da carga “demoníaca” do nome. Ainda assim, reconhece-se tratar-se essencialmente da mesma entidade: o Poder da Severidade Divina, o “Anjo da Justiça Punitiva”.

Essa curiosa presença de Samael como arcanjo de Marte em manuais cristãos de magia mostra que os ocultistas viam nele uma força com a qual se podia trabalhar magicamente, não apenas um demônio a ser exorcizado. Nos rituais de astrologia mágica, o nome de Samael podia ser invocado para canalizar a energia marcial – fosse para proteção, para combater inimigos ou para realizar operações de “justiça”. Aqui ele é encarado como um espírito marcial, feroz mas controlável, quase um anjo executor que o mago pode direcionar.

Por outro lado, algumas tradições demonológicas cristãs passaram a identificar Samael com um demônio do inferno. No “Dictionnaire Infernal” (1818) do ocultista Collin de Plancy, por exemplo, Samael é listado como “príncipe dos demônios segundo os rabinos” e é narrado como o demônio que estava montado na serpente do Éden para tentar Eva. Essa descrição combina a visão rabínica com a perspectiva cristã de demonizar Samael como um anjo caído. Para muitos autores esotéricos cristãos dos séculos XVII–XIX, Samael era simplesmente outro nome de Satã ou de um de seus principais tenentes. Seu nome aparece às vezes entre os demonologistas goéticos, embora não na lista dos 72 espíritos da Goétia clássica. Alguns textos o colocam como um dos Quatro Príncipes Coroados do Inferno, correspondendo ao elemento Fogo (ao lado de Lúcifer, Leviathan e Belial, por exemplo). No ocultismo enochiano de John Dee, não há menção direta a Samael, mas na magia enochiana posterior alguns associam Samael à “Cabeça Demoníaca” do planeta Marte.

Em resumos modernos, Samael é reconhecido com um pé em cada mundo: ora listado entre anjos (arcanjos), ora contado entre demônios. Essa ambiguidade reflete sua origem – um anjo executor que ao longo do tempo foi “demonizado” no imaginário popular. Até mesmo na moderna Kabbalah Hermética, que integra a Árvore da Vida com um “Espelho” sombrio (a Árvore da Morte ou Qliphoth), o nome Samael aparece em duplicidade: de um lado da Árvore como o arcanjo de Geburah, e do outro lado como o nome de uma das Qliphoth. De acordo com algumas fontes herméticas, a casca qliphótica de Hod (esfera do intelecto) se chama Samael – representando “a mentira de Deus” ou “veneno de Deus”, isto é, o aspecto corrupto da lógica e da linguagem. Outros esquemas põem Samael liderando a Qliphah de Geburah (conhecida como Golachab, os “incendiários queimados” do julgamento excessivo). Em ambos os casos, fica claro que os ocultistas viam Samael também como uma entidade infernal quando deslocado de sua função legítima. Ele encarna a Guevurá divina (Força, Rigor) quando equilibrada dentro da Árvore da Vida; mas se essa força se divorcia da misericórdia e se torna autônoma, tem-se Samael como demônio destrutivo.

Nos grimórios de magia cerimonial, encontramos o nome de Samael com funções variadas. No Sefer Raziel (um famoso grimório hebraico medieval), Samael é mencionado presidindo certos períodos astrológicos – governando a segunda estação do ano e um dos ventos, além de reger a terça-feira, dia tradicionalmente associado ao anjo da morte. Alguns amuletos judaicos medievais traziam o nome Samael inscrito para afastar o mal, curiosamente, utilizando o “veneno contra o próprio veneno”. De fato, em amuletos hebraicos ele às vezes figura como o Anjo da Morte a ser controlado ou aplacado. A ideia parece ser que invocar o nome do príncipe do mal (Samael) poderia conferir proteção contra influências malignas menores, numa espécie de hierarquia onde um “demônio maior” pode subjugar os menores. Esse uso apotropaico do nome de Samael ecoa a crença de que até o mal responde a Deus e pode ser obrigado a cumprir certos desígnios benéficos.

O Adversário Necessário: Teologia e Simbolismo de Samael

Com esse panorama histórico, podemos voltar à questão central: Samael é o inimigo de Deus, ou o executor da vontade divina quando Deus não deseja sujar as mãos? A resposta, paradoxalmente, é: ele é ambas as coisas. Na literatura mais antiga, como vimos, Samael cumpre ordens divinas – ele é o “Promotor” no tribunal celeste, agindo com permissão do Juiz supremo. Nesse sentido, ele não é um rebelde autônomo, mas sim uma função necessária na justiça divina. “Não há mal que aconteça na cidade que não tenha sido feito por YHWH” (conforme Amós 3:6) – mas a mão que executa esse mal, muitas vezes, é a mão de Samael.

Entretanto, à medida que evoluímos para os períodos medieval e moderno, Samael vai assumindo cada vez mais a característica de antagonista. Isso se dá em parte pela influência de visões dualistas (como a do gnosticismo e mesmo do maniqueísmo, ou no imaginário cristão medieval do Diabo). Na tradição gnóstica, por exemplo, Samael é virtualmente identificado ao Demiurgo – o falso deus criador que ignora a verdade suprema. Os gnósticos do século II d.C. ensinavam que o deus do Antigo Testamento era na verdade Samael, cujo nome eles traduzem por “Deus Cego” ou “Deus dos cegos”, pois ele não enxergava a realidade divina acima dele. No texto gnóstico Apócrifo de João, o primeiro Arconte (governante do cosmos material) proclama “Eu sou Deus e não há outro além de mim” – frase idêntica à de Isaías 45:5 – e nesse momento uma voz divina o adverte: “Estás errado, Samael”. Aqui Samael representa claramente o inimigo de Deus (ou melhor, do Deus verdadeiro oculto além do mundo). Ele é pintado como arrogante, ignorante e malvado, responsável por aprisionar as almas na matéria. Esse Samael gnóstico é uma figura arconte, literalmente um governante das trevas, e não tem conotação de servir a um bem maior – ele é um usurpador insano no comando do universo físico.

Já na mística judaica, mesmo com todo o mito dualista envolvendo Samael, evita-se dizer que exista um segundo deus. Samael continua sendo, no fundo, uma criatura submetida ao Criador. Porém, por razões pedagógicas e simbólicas, muitas vezes fala-se dele como se fosse um inimigo independente. É o caso, por exemplo, de descrições em que Samael é chamado de “outro deus” ou em que se narra que Deus somente o dominou completamente ao entregar a Torá a Israel – insinuando que antes disso Samael reinava sobre os povos pagãos. Essas narrativas visam enfatizar a escolha moral do ser humano: seguir a lei divina (subjugando Samael) ou entregar-se ao pecado (fortalecendo-o). Politicamente, como vimos, elas também serviam para demonizar os inimigos externos. Teologicamente, contudo, os rabinos sempre ressalvaram que Samael não passa de um malach (anjo/mensageiro). Por mais alto que ele seja, não tem autonomia para desafiar Deus se este não lhe permitir. No livro do profeta Zacarias (3:1-2), quando Satã acusa o sumo sacerdote, Deus repreende Satã diretamente – isso é lido como um indicativo de que, no momento certo, Deus silencia o acusador. Em última instância, Samael é visto como um cão na coleira: late, morde, mas seu dono é quem decide o quanto de liberdade ele tem.

Essa dialética trouxe à tona uma visão profunda: Samael como “adversário necessário”. Diversos pensadores, ao longo dos séculos, insinuaram que o mal cumpre um propósito no plano divino – seja testar, punir ou estimular o crescimento espiritual. Nesse sentido, Samael seria quase um empregado de Deus no “departamento de contencioso cósmico”. Uma frase rabínica famosa diz: “O Mesmo que é o bom impulso, é o mau impulso; o Mesmo que é o anjo acusador, é o anjo da morte”. O Zohar inclusive retrata Deus rindo de Samael quando este acredita triunfar sobre os justos, pois desconhece que está fazendo, sem querer, a vontade secreta do Criador. Essa ambiguidade teológica é proposital: mantém-se Deus como fonte de todo bem, ao passo que o mal é personificado em outrem – mas, ao mesmo tempo, evita-se estabelecer um princípio do mal independente de Deus.

A Interface Sombria: Samael no Ocultismo Moderno e na Psicologia Profunda

Nos últimos séculos, especialmente com o florescimento do ocultismo moderno, Samael foi “redescoberto” por magos, teosofistas e satanistas como uma figura rica em significados arquetípicos. Assim como ocorreu com Lúcifer (revalorizado em alguns círculos como símbolo de conhecimento e libertação), Samael passou a ser reinterpretado não como um vilão absoluto, mas sim como um guardião e iniciador dos caminhos mais difíceis da alma.

Ocultistas contemporâneos que praticam Magia Cerimonial, Goétia ou Demonolatria frequentemente descrevem Samael como um espírito com o qual se pode trabalhar para transformação pessoal. Um exemplo é a tradição da Demonolatria moderna, na qual praticantes cultuam entidades demoníacas de forma semelhante a deuses. Nessas vertentes, Samael é às vezes chamado de “Arcanjo Sagrado da Escuridão e da Morte”, um título paradoxal que o apresenta como santo e sombrio ao mesmo tempo. Em textos de grupos satanistas gnósticos ou Luciferianos, encontramos Samael retratado como um mentor severo que guia o adepto através das “sombras” para encontrar luz interior. Ele é associado à coragem, força e verdade nua e crua.

Uma sacerdotisa ocultista contemporânea, Akelta, que trabalha com demonolatria, descreve Samael nos seguintes termos: “Samael é um anjo da escuridão e da morte. Ele compreende os aspectos da sombra e da transformação pessoal da alma... Ele entende a jornada sombria pela qual muitos de nós somos chamados a passar. Conhece os ‘monstros’ interiores e abraça a forma monstruosa da alma, a escuridão que dorme dentro de nós”. Essa visão quase psicológica de Samael o coloca como uma interface arquetípica para lidarmos com nosso próprio lado sombrio. Trabalhar magicamente com Samael seria, assim, confrontar os medos, os traumas e tudo aquilo que precisamos “matar” em nós para renascer transformados.

Adicionalmente, ocultistas salientam o aspecto de Samael como adversário no sentido construtivo. Ele é chamado de “o Adversário Primordial”, líder dos chamados “satans” (adversários). Contudo, enfatiza-se que ser adversário nem sempre é algo negativo“você pode ser adversário daquilo que está errado no mundo”, dizem alguns autores. Nessa perspectiva, Samael personifica a força que questiona, que vai contra a ordem estabelecida quando esta se torna injusta ou estagnada. Ele é visto como agente de mudança, destruindo o que é falso ou obsoleto para abrir caminho ao novo. “Ser desafiado por um Adversário frequentemente leva a transformações positivas”, escreve Akelta, concluindo que Samael pode ser visto como um facilitador de mudança e transformação. É uma inversão fascinante: o mesmo anjo que na religião oficial era temido por trazer morte, no ocultismo é cortejado por trazer renascimento através da crise.

Outro título que às vezes lhe é dado em círculos esotéricos é “Guardião do Umbral”. Essa expressão se refere às entidades que testam os aspirantes antes de estes ingressarem em planos superiores de consciência. Samael, com sua energia de julgamento, encaixa-se perfeitamente nesse papel: ele seria o guardião da última porta, aquele que confronta a alma com suas verdades mais duras antes que ela possa ascender. Somente quem encara Samael – isto é, quem encara seus próprios aspectos sombrios e cármicos – pode seguir adiante na jornada espiritual. De certo modo, isso ressoa com a antiga função de Samael como acusador: ele confronta a pessoa com seus “pecados” ou imperfeições ocultas. A diferença é que, na ótica ocultista, esse confronto é desejável e faz parte da iniciação. Samael torna-se, então, um iniciador nos “mistérios da morte e renascimento”: ele “mata” a personalidade egoica, para que do “cadáver” simbólico renasça o ser verdadeiro, purificado.

Adicionalmente, alguns ocultistas sugerem que Samael seja uma máscara ritual ou interface cósmica para canalizar certos poderes. Por exemplo, na magia cerimonial enochiana adaptada, entalha-se o sigilo de Samael para trabalhar com energias marciais de destruição de obstáculos. Na demonolatria, entoa-se o enn (mantra) de Samael para absorver sua força. Em ordens como a Fraternitas Saturni (uma ordem ocultista alemã do século XX), Samael foi associado ao planeta Saturno como aspecto escuro de Yahweh – uma face severa de Deus necessária para a evolução. De fato, não é raro que ocultistas enxerguem Samael como uma face oculta do próprio Deus quando Ele atua como destruidor. Essa noção, embora à primeira vista “herética”, tem eco em fontes místicas judaicas: lembra da gematria que igualava Samael+Lilith a YHVH? A mensagem ali é que mesmo a escuridão tem origem na Divindade. Ocultistas levam isso a outro patamar e afirmam que invocar Samael é, de certa forma, contatar a severidade divina sem os véus habituais. É evocar Deus “de face escura”, Deus em sua coluna esquerda do Julgamento.

Em síntese, Samael hoje é compreendido por muitos ocultistas como um arquétipo poderoso, sombrio e necessário. Ele não é visto meramente como um demônio a ser temido, mas como uma força com a qual se relacionar conscientemente – seja para proteção, para destruição do mal, ou para transformação interna. Como disse um estudioso: “O veneno de Deus pode ser também o remédio da alma”. Samael representa esse veneno-remédio: aquilo que fere o ego para curar o espírito. Questionar se ele é inimigo de Deus ou executor da vontade divina talvez seja, portanto, uma falsa dicotomia. No jogo cósmico, o Adversário pode ser precisamente o braço oculto do Divino. Cabe a nós, que ousamos trilhar os limiares da alma, encarar Samael de frente – sem véus, sem ilusões – e reconhecer nele aquele espelho escuro que, em última instância, reflete a verdade implacável sobre nós mesmos.


Referências e Leituras Sugeridas

  • Jewish Encyclopedia (1906)Entry “Samael”. Compilação clássica que resume as aparições de Samael na literatura rabínica, descrevendo-o como “príncipe dos demônios”, acusador, sedutor e anjo da morte, e reunindo várias legendas e referências talmúdicas sobre seus feitos (Eden, Jacó, Êxodo etc.).

  • Dan, Joseph (1980)“Samael, Lilith, and the Concept of Evil in Early Kabbalah”, AJS Review Vol.5. Estudo acadêmico aprofundado sobre a evolução do mito de Samael e Lilith na Cabala. Dan analisa como Rabbi Isaac ha-Kohen no século XIII estabeleceu Samael e Lilith como par central do “lado esquerdo”, transformando mitos folclóricos em uma verdadeira mitologia do mal.

  • Cambridge Apocalypse of John (Nag Hammadi Library)The Secret Book of John. Texto gnóstico onde o Demiurgo arrogante é chamado Samael, “deus cego”. Contém a famosa passagem: “Ele disse: ‘Eu sou Deus, não há outro além de mim’... Uma voz veio do Alto: ‘Estás errado, Samael’.”. Ilustra a perspectiva gnóstica de Samael como arconte maligno.

  • DeliriumsRealm.com – “Lilith, Samael, and Asmodeus: The Triad of Evil in Lurianic Kabbalah”. Artigo online (2023) que explica a demonologia da Cabala Luriânica, incluindo o relacionamento familiar entre Samael (marido), Lilith (esposa) e Asmodeus (filho) e sua oposição às forças divinas.

  • SatanandSuns/DemonsandDemonolatry – “Samael – Holy Archangel of Darkness and Death...”. Perspectiva de uma praticante de demonolatria, apresentando Samael como Arcanjo das Sombras que facilita transformação pessoal. Uma fonte contemporânea que exemplifica a releitura positiva de Samael como mentor e catalisador no caminho da mão esquerda.

  • Talmud Bavli, Tractate Shabbat 151b – Referência à crença de que “quem dorme sozinho em casa é apreendido por Lilith”, refletindo a presença de Lilith (e por extensão Samael) no imaginário talmúdico. Indicado para entender o pano de fundo de medo e respeito com que essas entidades eram tratadas.

  • Midrash Bereshit Rabbah 22:7 – Trechos que tratam da criação de Lilith e sua fuga do Éden. Útil para contextualizar a união posterior entre Lilith e Samael nas lendas.

  • Scholem, Gershom (1965)“Kabbalah”. Livro abrangente sobre a Cabala judaica. Contém entradas sobre Samael e Lilith, discutindo sua função no sistema cabalístico e trazendo referências primárias. Boa leitura para aprofundar-se na visão mística judaica.

  • Davidson, Gustav (1967)“A Dictionary of Angels, Including the Fallen Angels”. Compêndio que lista Samael como anjo caído, citando diversas fontes (Talmude, Zohar, textos apócrifos) e sincretismos. Fornece um panorama geral acessível das múltiplas facetas de Samael ao longo do tempo.

  • Dennis, Geoffrey (2016)“The Encyclopedia of Jewish Myth, Magic and Mysticism”. Inclui verbetes sobre Samael, Satã e Lilith, explicando de forma concisa o papel de Samael na demonologia judaica, além de referências a amuletos e práticas mágicas onde seu nome aparece. Uma boa introdução para leigos, disponível em inglês.

  • Lurianic Kabbalah Texts (Etz Chaim de R. Chaim Vital) – Para leitores avançados, os escritos de Chaim Vital (discípulo de Isaac Luria) descrevem o sistema das Qliphoth. Neles, Samael é identificado como a força impura correspondente à Sephirah Gevurah, e detalha-se como as “cascas” do mal se alimentam da luz divina decadente.

  • Morte Súbita Inc. (site brasileiro de ocultismo) – Artigos em português sobre Lilith e Samael. Em particular, “O Graal Profano” traz informações da Cabala e magia sobre as quatro “noivas de Samael” e sua relação com o anjo da morte e do veneno, apresentando uma perspectiva esotérica nacional.

Cada uma dessas referências aprofunda um aspecto da figura de Samael – seja histórico, teológico ou mágico. Juntas, elas ajudam a desmistificar Samael, mostrando-o não como um demônio monolítico, mas como uma entidade multifacetada, cujos significados evoluíram conforme as necessidades simbólicas de cada época. Para quem deseja explorar mais, as obras acima oferecem um ponto de partida sólido, seja pela via acadêmica ou pela trilha oculta, em inglês e português. 

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