Os Diabos dos Cinco Elementos Clássicos


Introdução: O Círculo Elemental Vivo

No círculo mágico imaginário, cinco forças primordiais se agitam: éter, água, fogo, terra e ar. Estas não são meras substâncias inertes descritas por filósofos, mas sim entidades vivas, mutantes, dotadas de inteligências selvagens – verdadeiros “diabos” elementais que sussurram segredos arcanos aos que ousam escutá-los. Aqui, a palavra diabo é empregada no sentido ocultista de daimon, o espírito inspirador e indomado da natureza. Na Grécia Antiga, daimon referia-se a seres espirituais muitas vezes benéficos; o próprio Sócrates mencionava um daemon interior que o aconselhava e guiava. Assim, ao chamarmos cada elemento de diabo, libertamo-nos de dogmas moralistas: não se trata do mal judaico-cristão, mas da força bruta e criativa que desafia limites e convenções. Como afirmou William Blake, “Energia é Deleite Eterno” – a energia indomável que outrora foi rotulada como “demoníaca” é, na verdade, a seiva vital e extática do cosmos.

Cada um dos cinco elementos clássicos pode ser encarado como uma potência arquetípica dotada de um diabo interno, uma inteligência misteriosa e indomável que busca se manifestar e comunicar. Diferentes tradições associaram entidades a esses elementos – deuses, anjos, demônios, elementais – mas aqui seguiremos um caminho original e libertário, sem nos prender a sistemas fixos. Em ordens herméticas como a Golden Dawn, por exemplo, a Água foi vinculada ao arcanjo Gabriel e às ondinas (espíritos aquáticos), o Fogo a Miguel e aos salamandras, a Terra a Uriel e aos gnomos, o Ar a Rafael e aos silfos, enquanto o Éter (Espírito) ocupa o ápice do pentagrama. No entanto, em nossa visão, os “diabos” elementais não têm nome ou forma fixos – eles se metamorfoseiam conforme o mago ou bruxa interage com eles por meio de rituais, intuições, símbolos e estados alterados de consciência. São entidades livres como a própria natureza, ora mestres, ora tricksters, que ensinam por meio de visões e experiências diretas.

Também é preciso notar que cada elemento tem ressonâncias profundas na psique humana, conforme intuído por Carl Jung e a psicologia arquetípica. As quatro funções básicas descritas por Jung alinham-se com os elementos: ar corresponde ao pensamento racional, água ao sentimento (emoções), terra à sensação (percepção concreta) e fogo à intuição criativa. O quinto elemento, éter, poderíamos associar ao próprio espírito ou consciência unitária que permeia as outras funções. Assim, ao explorarmos cada um desses elementos, exploramos também aspectos de nós mesmos – partes do corpo, da alma e do inconsciente coletivo. Veremos como os diabos elementais se manifestam na natureza, no corpo, nas emoções e nos sonhos, e de que modo podemos despertá-los para abrir canais de conexão com planos ocultos e entidades cósmicas. Em vez de temer ou subjugar esses demônios, buscamos aliança e diálogo. Com um olhar poético e visionário, entrelaçando mitos, alquimia, astrologia e imaginação, adentremos este sabá elemental – um ensaio esotérico que convida à imersão simbólica nas potências da matéria e do espírito.

Éter: O Diabo Primordial do Vazio Vivo

O Éter é o quinto elemento, a quinta-essência insondável que permeia tudo e escapa aos sentidos ordinários. Imagine-o como o vazio vivo, o útero cósmico onde todas as formas germinam e para onde todas retornam. Na cosmologia alquímica, o éter corresponde à Prima Materia, a matéria-prima primordial de onde tudo surge. É a força vital invisível que dá vida e estrutura ao universo, uma luz eterna que pulsa através de todas as formas e seres. Diferente dos quatro elementos terrenos, o éter é sutil e onipresente: “o invisível vital que conecta os reinos físico e não-físico”. Os antigos gregos chamavam de aithér o ar mais puro das alturas, a essência respirada pelos deuses no Olimpo. Na mitologia, Éter era filho da Noite (Nyx) e da Escuridão (Érebo), um fato simbólico revelador: da escuridão primordial nasce a luz etérea. Ou seja, o éter traz em si tanto a luz quanto as trevas, sendo ao mesmo tempo o brilho divino e o abismo noturno. Esse paradoxo é a marca de seu “diabo” interno – uma inteligência primordial que abraça todos os opostos.

Chamar o éter de diabo primordial é reconhecer nele uma força arcana, indomável, que está além das divisões de bem e mal. Se alguns o veneram como Espírito Santo ou Deusa-Mãe Cósmica – “a Mãe Cósmica todo-abarcante, a Deusa viva que exala a criação” – podemos também concebê-lo como um dragão invisível que dorme no vácuo entre as estrelas. Esse dragão-éter é a fonte de todo feitiço e toda magia, pois dele emanam os outros elementos. Em diversas cosmologias, o éter ocupa a esfera mais alta: Aristóteles definiu-o como o elemento “primeiro” que compõe os céus, incapaz de ser quente, frio, seco ou úmido como os demais. É o movimento circular perfeito do firmamento, a música das esferas. Os sábios medievais e renascentistas viam no éter o meio pelo qual a luz se propagava e as influências astrais atuavam – a famosa luminífera aether que a ciência buscou e não encontrou. Para os místicos, entretanto, a ausência de comprovação empírica pouco importa: o éter revela-se nas entrelinhas da realidade, nos fenômenos sutis da sincronicidade e da inspiração repentina.

No corpo e na psique, o diabo do éter se manifesta como consciência e conexão. Ele habita os espaços vazios: o silêncio entre os pensamentos, o intervalo entre a inalação e a exalação, os “vazios” do átomo e das células. Tradicionalmente associou-se o éter ao espírito vital que circula no corpo – no yoga e Ayurveda ele é o akasha, o princípio do espaço interno que permite que o ar circule, que o fogo arda, que a água e a terra tenham onde se alojar. Sinta-o nas cavidades do seu corpo, nas expansões de sua consciência. Quando um mago entra em êxtase meditativo ou uma bruxa viaja fora do corpo, é o éter que está sendo adentrado – a substância sutil na qual a mente flutua. Rituais de éter são feitos no silêncio e na escuridão pontuada por estrelas: contemplar o céu noturno, entoar sons cósmicos (o mantra Om é dito ser a vibração do éter), projetar-se astralmente. Nesses estados alterados, o daimon do éter fala por visões intuitivas e insight fulminante. Ele pode se apresentar como uma presença vaga mas esmagadora, um “oceano de vazio” que paradoxalmente está repleto de potencial. Os alquimistas o chamavam de Quinta Essentia, acreditando que nele residia o segredo da transmutação e da vida eterna. De fato, o éter é a peça que falta para unificar ciência e espírito: poderíamos compará-lo ao tecido do espaço-tempo ou à matéria escura misteriosa que mantém coesas as galáxias. Em termos ocultos, é o Astral Luminoso, o campo onde vibram as energias psíquicas e onde se elevam as invocações.

Despertar o diabo do éter é abrir um canal para o Todo. Quando ele se levanta, sentimos uma expansão da consciência para além do ego – a sensação vertiginosa de ser um com o universo. É um estado exaltado em que se pode receber mensagens de entidades cósmicas, guias espirituais, deuses estelares. Todas as divindades solares, lunares e estelares falam através do éter. Nos sonhos, o éter se manifesta em visões de voo ou queda infinita, de viagens pelo espaço ou encontros com seres de luz. É comum que o “diabo do éter” se comunique através de símbolos universais, aqueles arquétipos presentes no inconsciente coletivo – ele rege essa camada profunda da psique onde os mitos se originam. Por isso, trabalhar com o éter exige sensibilidade intuitiva; é necessário decifrar sonhos, sincronicidades, sutilezas. Mas a recompensa é grande: uma vez em sintonia com o éter, o mago torna-se ponte entre mundos. Os canais com planos ocultos superiores – planos angelicais, akáshicos ou até extraterrestres – abrem-se como portais. A criatividade visionária também jorra desse contato: muitos poetas, artistas e profetas “ouviram” no silêncio do éter as vozes das Musas ou dos espíritos inspiradores. O éter, enfim, é a liberdade suprema da magia, pois nele não há barreiras de tempo e espaço. Seu diabo interno nos ensina a lição da onipresença: estamos conectados a tudo que existe. Ao abraçá-lo, o mago liberta-se das amarras dogmáticas – torna-se ele próprio etéreo, livre, criador de sua realidade.

Água: O Diabo Abissal das Emoções e Sonhos

Descendo da sutileza aérea do éter, encontramos a Água – elemento lunar, úmido, mutável – governada por um espírito que é ao mesmo tempo fonte de vida e força caótica. A Água é profundidade: um espelho ondulante que reflete a alma e um abismo escuro onde monstros primordiais dormem. Em muitas cosmogonias, antes da terra firme existir havia apenas as águas do caos. Os babilônios personificaram esse caos aquático em Tiamat, a dragão do mar primordial “que rugia e esmigalhava na escuridão da criação”. Tiamat, a Mãe dos deuses, acabou demonizada e partida em dois por Marduk, mas seu mito ecoa a ambiguidade do elemento: a água cria e destrói, nutre e afoga. O diabo da água é, pois, um daemon abissal, feminino e terrível como uma deusa dragão. Ele se manifesta no inconsciente, governando as marés das emoções, os fluxos e refluxos da vida psíquica. Carl Jung notou que água frequentemente simboliza o inconsciente nas imagens oníricas – é esse vasto mar interior, repleto de memórias esquecidas, instintos e visões, que constitui o reino do diabo aquático.

No âmbito psicológico e mágico, a Água está associada às emoções, intuição e sabedoria interior. Em muitas tradições ocultas, água é sinônimo de sentimento – não por acaso, nos signos de astrologia, os signos de Água (Câncer, Escorpião, Peixes) são considerados emotivos e psíquicos. Fontes esotéricas modernas descrevem: “Água é o elemento da emoção e da sabedoria, particularmente a sabedoria da idade”. Isso sugere que a Água guarda memórias ancestrais, experiências acumuladas – tal como o oceano guarda sedimentos de bilhões de anos. O inconsciente coletivo junguiano foi comparado a um mar ou água universal, e nossos sonhos de inundação, de mergulho ou naufrágio muitas vezes indicam que conteúdos inconscientes vêm à tona. Assim, o diabo da água nos fala através de sensações viscerais e imagens simbólicas emergindo do fundo da mente. É aquela súbita onda de tristeza sem causa aparente, ou uma empatia profunda que nos faz “sentir junto” com outro ser – como se nossas águas internas se comunicassem. Jung escreveu que símbolos maternos universais incluem o mar, lagos, poços e até o útero, pois a Água é vista como Mãe (o útero cósmico e também a sepultura líquida). Podemos lembrar das águas amnióticas: viemos todos do oceano da mãe. O diabo aquático, portanto, é também um aspecto da Grande Mãe sombria – às vezes compassiva, às vezes devoradora.

Fisicamente, o elemento água reina em nossos fluidos vitais. Sangue, linfa, seiva, suor, lágrimas: o corpo é cerca de 70% água, uma miniatura do oceano. As emoções realmente se sentem no corpo como marés – quem nunca teve “frios na barriga” (medo, ansiedade) ou “fervura de sangue” (ira)? A medicina antiga relacionou água ao humor fleuma e ao temperamento fleumático, frio e úmido, predisposto à calmaria e, em excesso, à apatia. Mas mesmo o fleumático mais tranquilo esconde correntes submarinas de sentimento. O diabo interno da água às vezes dorme como um lago plácido, noutras desperta como um turbilhão. Rituais de água costumam envolver espelhos d’água, cálices, poções e o poder lunar. Bruxas sussurram feitiços a tigelas de água sob o luar para captar intuições; magos miram fixamente a superfície de um lago ou de um espelho (prática de scrying) até vislumbrarem imagens do subconsciente projetadas ali. A água é uma porta para o mundo dos espíritos – não por acaso, muitas lendas colocam entradas para reinos místicos embaixo d’água (cidades submersas, o reino das sereias, etc.). Ao despertar o diabo da água, o praticante pode sentir uma súbita enxurrada de emoções ou clarividência. Visões oníricas brotam: o espírito aquático comunica-se por sonhos simbólicos, já que a linguagem dele não é lógica, mas imagética e poética.

Na natureza, vemos esse daemon nas próprias águas em movimento. O sussurro de um riacho nos fala como uma voz antiga; o mar bravio ruge com cólera titânica. Muitos povos acreditaram em espíritos aquáticos – sereias, ondinas, náiades, Iemanjá – que nada mais são que faces desse mesmo arquétipo. Mitos universais de dilúvio (do Gilgamesh à Arca de Noé) expressam o medo/respeito pelo poder devastador das águas. Mas a água também purifica e renova: rituais de batismo, banhos sagrados no Ganges ou abluções diversas indicam que instintivamente buscamos a água para limpar a alma e renascer. Isso reflete um dos dons do diabo da água: ele dissolve as durezas, lava impurezas energéticas e psíquicas, deixando-nos maleáveis para nova forma. Alquimicamente, a água corresponde à etapa da solutio, na qual o ego duro é dissolvido para que algo novo seja criado. Essa etapa pode ser dolorosa (afogamento simbólico, inundação emocional) mas é necessária para a regeneração. Por isso, o praticante não deve temer chorar, submergir em seus sentimentos, até mesmo sentir-se “perdido em mar aberto” durante um trabalho mágico – essas são provações do espírito aquático, testando nossa entrega. Quem se rende e flutua, em vez de lutar contra a corrente, pode ser levado a reinos escondidos: memórias de vidas passadas, mensagens de ancestrais nas águas do mundo dos mortos (daí a tradição de scrying com poços e fontes para contatar espíritos).

Em termos astrais, a Água abre canal para entidades lunares e do subconsciente coletivo. A Lua, em astrologia, rege a água e as emoções, e é portadora de influências psíquicas – não surpreende que fases lunares afetem marés e também o humor humano. O diabo da água responde fortemente aos ciclos da Lua: na lua cheia, ele dança frenético em pesadelos vívidos ou êxtases místicos; na lua nova, recolhe-se qual lago escuro, mas trabalhando silenciosamente no subterrâneo da alma. Magos e bruxas que trabalham com a água aprendem a navegar suas emoções como quem navega um rio – nem represa total (que um dia arrebenta), nem se afogar nelas, mas canalizar a corrente para girar o moinho da magia. Desperto, o diabo aquático pode trazer dons de mediunidade, empatia profunda e sabedoria oracular. Na calmaria após a tempestade emocional, a água reflete o céu e permite ver o futuro, tal qual o reflexo das estrelas num lago noturno. Em sonhos, esse espírito pode tomar forma de um guia marinho – talvez uma serpente marinha ou um velho peixe sábio – que guia o sonhador por debaixo d’água, mostrando tesouros ocultos (símbolos do self) ou monstros que devem ser confrontados. Em suma, a Água nos ensina a mergulhar em nós mesmos sem medo, pois “o conhecimento brota da fonte mais profunda”. Ao encarar o diabo abissal deste elemento de frente, descobrimos que ele é também um aliado precioso: o guardião das portas do inconsciente e, portanto, da verdadeira magia que emana de dentro.

Fogo: O Diabo da Chama Transformadora

Se a água é noite úmida da alma, o Fogo é o dia ardente do espírito. Elemento de energia, luz e metamorfose, o Fogo sempre foi ambivalente: adorado como divino e temido como destruidor. Seu diabo interno pode se imaginar como um dragão de chamas ou uma fênix renascendo das cinzas – criatura feroz que tanto incinera quanto ilumina e purifica. Na mitologia ocidental, o fogo foi dom e maldição. Prometeu roubou o fogo dos céus para dar aos humanos, desafiando os deuses e pagando caro; essa chama roubada representa o conhecimento e a liberdade trazidos por um “diabo-lúcifer” (Lúcifer = portador da luz) primordial. Já nas tradições védicas, Agni, o deus do fogo, é honrado como mensageiro sagrado entre homens e deuses, consumindo as oferendas e levando-as aos céus. Em ambos os casos, percebemos o poder transformador: o fogo é agente de mudança, de transmutação alquímica e espiritual. De fato, na Arte Real (alquimia), o fogo é considerado o principal catalisador: “o elemento primordial da transformação”. A calcinatio – calcinação – queima as impurezas e revela a essência pura. Assim age o daemon do fogo dentro de nós: um impulso de vontade e paixão que pode queimar obstáculos e refinar nossa alma.

No plano arquetípico, o Fogo corresponde à intuição e inspiração, bem como à vontade. Jung associou a função intuitiva à energia do fogo – aquela centelha que capta verdades além da lógica. Também, culturas diversas ligaram o temperamento colérico (ativo, impetuoso) ao elemento ígneo – os antigos diziam que a bile amarela correspondia ao fogo, produzindo um gênio apaixonado e, às vezes, irascível. Não é por acaso que falamos “fogo do entusiasmo”, “fogo da ira”, “ardor da juventude”. O diabo do fogo comunica-se através dessas emoções exaltadas e impulsos criativos. Ele é a voz interior que diz “aja agora!”, “tenha coragem!”, ou que incita a riscar o fósforo das revoluções pessoais. É incendiário e libertário. William Blake – novamente ele, poeta visionário do fogo – escreveu que “Sem contrários não há progresso... O Bem é o passive; o Mal (Energia) é o ativo que nasce do Fogo da vida”. Ou seja, aquilo que chamamos de “mal” (o diabo) é, sob outra ótica, a pura energia vital em ação. O Fogo simboliza essa energia indomável que impulsiona a evolução. Vale recordar que nas cartas de Tarô, a carta d’O Diabo apresenta frequentemente elementos de fogo e está associada, esotericamente, à força de transformação alquímica: “tudo o que o fogo toca é mudado, muitas vezes além do reconhecimento – o Diabo (no Tarô) alude a essa conversão”. Essa conexão Diabo–Fogo reforça nossa visão: o diabo do fogo traz luz às sombras, mas de forma dolorosamente brilhante.

No corpo humano, o elemento fogo se manifesta como calor, metabolismo e energia nervosa. Os alquimistas internos (como na medicina ayurvédica) falam do Agni digestivo – o “fogo” no estômago que queima os alimentos e os transforma em força vital. Esse fogo corporal governa não só a digestão física, mas também a digestão mental das experiências, convertendo vivências em aprendizado e sabedoria. O coração, com seu calor e o sangue pulsante, também pertence a Marte e ao Sol – astros de fogo. “O fogo governa o coração, o sangue e a circulação, distribuindo a força vital pelo corpo assim como o Sol distribui a vida pelo sistema solar”. Assim, cada batida de coração é uma fagulha de nosso sol interior. Quando sentimos febre ou rubor na face por vergonha ou paixão, é o diabo ígneo atizando suas chamas em nós. Ele também se manifesta no sistema nervoso, nos relâmpagos sinápticos do cérebro – não por acaso muitas vezes associamos ideias brilhantes a “lampejos” e gênio criativo a “fogo na mente”. Inspirados por essa correspondência, ocultistas equipararam o elemento fogo ao plano mental superior, à visão intelectual e espiritual (afinal, o fogo produz luz, e luz equivale a entendimento). Não é sem motivo que muitas ordens mágicas fazem seus iniciados atravessarem testes de fogo simbólicos: caminhar sobre brasas, passar perto de tochas – provas de coragem e purificação para mostrar que o espírito domina a matéria.

O daemon do fogo se comunica de forma explosiva e direta. Diferente do sussurro aquático ou da nuance aérea, o fogo ruge, crepita, dança visivelmente. Em rituais, ele se manifesta nas chamas das velas, na fogueira cerimonial, no incenso em brasa. O mago, ao encarar a chama de uma vela até entrar em transe, pode enxergar formas e signos na chama – o diabo do fogo talvez mostrando rostos de espíritos ou letras ardentes. Ao dançar em volta de uma fogueira sob a lua, o praticante invoca a face dionisíaca do fogo: o êxtase, a perda de si no calor do momento. Alterar a consciência pelo fogo é fácil: basta fixar o olhar nas labaredas por alguns minutos que já adentramos leve transe hipnótico. Nesse estado, podemos ouvir a voz do fogo dentro – quem sabe como um dragão flamejante falando na linguagem da inspiração repentina. Ideias geniais costumam “saltar” como faíscas quando dialogamos com este elemento. Lembremos do mito: Prometeu trouxe aos humanos não apenas o fogo físico, mas a luz da razão e da criatividade divina. Por isso o diabo do fogo é também um Portador da Luz (um Lúcifer simbólico) que nos torna criadores. É a centelha da divindade dentro do mago.

No entanto, é preciso cuidado, pois fogo sem controle consome o próprio mago. Quantas vezes a ira cega levou à destruição de algo amado? O mesmo poder que ilumina pode queimar. O equilíbrio alquímico exige que Solve et Coagula (dissolver e coagular) sejam alternados; no caso do fogo: queimar e depois assentar. Depois da faísca de inspiração, é preciso terra para concretizar – caso contrário as ideias se volatilizam em fumaça. Os sábios antigos diziam que o fogo era “ativo, masculino, ascendente”, buscando sempre subir aos céus. No simbolismo hermético, a chama sempre aponta para cima, aspirando ao divino. Isso nos mostra o lado elevado do fogo: aspiração espiritual, a busca pelo Sol do espírito. Místicos de muitas culturas buscaram a visão divina encarando o fogo do Sol (Surya) ao alvorecer, ou fixando a chama interna do terceiro olho. O daemon ígneo nesses casos traz puras visões celestes, rompantes de claridade mental e união com o divino. É a experiência do profeta Elias encontrando Deus na carruagem de fogo, ou de Moisés ante a sarça ardente. A sarça ardente da Bíblia é perfeita metáfora: um fogo que queima mas não consome, simbolizando a luz do espírito sustentando-se milagrosamente. Quando o diabo do fogo se eleva nesse patamar, o mago se torna um iluminado – literalmente em chamas com a Verdade, mas não destruído por ela.

Astrologicamente, o fogo conecta-nos aos astros brilhantes: o Sol (consciência, vontade), Marte (força combativa) e Júpiter (entusiasmo expansivo) são planetas “fogosos”. A personalidade de signos de fogo é entusiasta, criativa, às vezes dominadora. Esses são filhos do elemental flamejante. Tradicionalmente, salamandras (seres sutis do fogo) foram consideradas as inteligências desse elemento. Diz-se que vivem nas chamas e inspiram alquimistas no forno. São visualizadas como lagartos de fogo ou pequenas serpentes flamejantes. Em ritos modernos, os magos podem invocar a salamandra líder, Djinn (palavra que ecoa os gênios da lâmpada, espíritos de fogo do folclore árabe), pedindo por coragem, purificação ou poder transformador. Porque, sobretudo, o Fogo é transformação e poder. Se a água cura pela receptividade, o fogo cura pela cauterização e regeneração. Pense no Fênix: sua morte no fogo é a condição para renascer jovem das cinzas. O diabo do fogo é, em essência, essa força Fênix em nós – destrói o velho eu para possibilitar o surgimento do eu renovado. Despertá-lo significa incinerar medos, queimar karmas antigos, enfrentar desafios com ardor e fé. É perigoso? Sim, pois brincar com fogo sempre é. Mas sem o fogo, não há luz na escuridão, não há calor da vida, não há alquimia interna. Por isso, os magos verdadeiros trazem a marca do fogo no olhar: um brilho intenso de paixão e conhecimento. Esse é o seu diabo interior sorrindo – a chama indomada da liberdade que arde no fundo de suas pupilas.

Terra: O Diabo das Raízes e Segredos Subterrâneos

Sólida, pesada, fértil e misteriosa, a Terra é o elemento da materialização e também do ocultamento. Seu diabo interno reside nas profundezas do solo – pense em um dragão ctônico dormindo sobre tesouros em cavernas, ou em Pan, o deus bode dos bosques, rindo selvagemente entre as árvores antigas. A Terra tem sido tradicionalmente associada à matéria, à estabilidade e ao mundo sensorial. Por isso, pode parecer paradoxal falar de um diabo da terra – afinal, não é a terra sinônimo de firmeza e quietude? Mas justamente nas camadas subterrâneas da realidade se escondem forças tremendas: vulcões adormecidos, riquezas cristalizadas, memórias fósseis de eras passadas, espíritos anciãos. O diabo da terra é uma inteligência ancestral e mutante, lenta porém irresistível, que rege o crescimento das raízes e os tremores dos terremotos. Ele representa tanto o aspecto nutridor e materno do solo quanto o aspecto sombrio e infernal do submundo. Na história das religiões, a Terra foi venerada como Mãe (Gaia, Deméter, Ceres) e temida como domínio dos mortos (Hades, Plutão). Isso indica que a terra guarda a dualidade vida-morte: nela brotam as sementes e para ela retornam os corpos em decomposição. A terra é túmulo e ventre ao mesmo tempo – seu diabo interno conhece os segredos da vida e da morte, pois ele devora para gerar, transmutando carniça em flores.

No arcabouço psicológico, o elemento terra corresponde à sensação concreta, aos sentidos e à noção de realidade prática. Pessoas “terra” são vistas como pé-no-chão, pragmáticas, resilientes. Porém, isso não significa falta de profundidade espiritual – significa apenas que seu acesso ao mistério se dá pelo tátil e tangível. O daemon terreno comunica-se através do corpo, das sensações físicas e instintos. É aquela voz que diz “fique atento a este lugar, algo aqui é sagrado” quando pisamos num antigo bosque, ou o calafrio na espinha ao entrar numa casa velha carregada de histórias. É também o impulso instintivo de sobreviver e prosperar, a voz da autopreservação que alguns chamariam de “demoninho egoísta” mas que, em equilíbrio, é saudável e necessário. Jung identificou na função sensação (ligada à terra) a habilidade de perceber o mundo como ele é, em detalhes concretos. Ou seja, o diabo da terra nos ancoraria no presente, ajudando a ver a magia no comum: no cheiro úmido do solo, no sabor do sal, na textura de uma pedra. Os ocultistas sempre valorizaram essa conexão – afinal, ferramentas e ingredientes mágicos vêm da terra: ervas, cristais, metais. Há poder no material. A alquimia dizia que no Sal (princípio da terra) residia o corpo fixo das coisas, necessário para conter o enxofre (fogo) e o mercúrio (água/ar). Assim, o espírito da terra é aquele que dá forma e estrutura às inspirações voláteis. Seu mantra é: “realize, concretize, manifeste”.

Na prática mágica, evocar o elemento terra é evocar força, proteção e paciência. Os grimórios antigos mencionam espíritos terrestres chamados gnomos – guardiães de minas e florestas – e elementais diversos da terra (p.e. duendes, elfos telúricos). Paracelso, médico e místico renascentista, ensinava que os elementais da terra (gnomos) são tão reais quanto nós, porém feitos de matéria sutil; habitam um reino invisível que coexiste com o nosso, “passando através de rochas e paredes como nós andamos pelo ar”. Esses seres, apesar de pequenos em estatura na lenda, possuem sabedoria antiga e certa astúcia travessa. O diabo da terra muitas vezes assume essa figura de Trickster da floresta – um Puck, um curupira, um fauno – que testa nosso respeito pelo mundo natural. Tente trapacear a Mãe-Terra e você enfrentará sua fúria: colheitas fracassadas, doenças, terremotos. Essa é a face vingativa do diabo terreno, lembrada em oferendas propiciatórias em muitas culturas (dos sacrifícios para Deméter às oferendas para Pachamama). Por outro lado, honre-o e ele lhe mostrará tesouros. Quantas histórias folclóricas contam de humanos guiados por um espírito da mata até um presente – um cristal mágico, um conhecimento de ervas curativas, ou simplesmente a paz interior encontrada no isolamento natural.

No corpo e emoções, o elemento terra manifesta-se como estabilidade (ou estagnação). É nosso esqueleto, literalmente os ossos (pedras vivas) que nos sustentam. É a sensação de segurança ao sentar no chão ou abraçar alguém – “manter os pés na terra” é permanecer centrado. Em excesso, porém, terra traz inércia, apego, depressão (“peso na alma”). O daemon terreno às vezes nos prende com correntes invisíveis de medo da mudança. Por isso, ativá-lo positivamente requer equilíbrio: raízes profundas para nos nutrir, mas coração leve para não afundar em areia movediça. Os rituais de terra incluem traçar círculos com sal ou farinha (marcando limites sagrados no chão), trabalhar com cristais, enterrar símbolos ou pedidos escritos para germinar intenções. Uma bruxa pode enterrar um talismã ao pé de uma árvore antiga, pedindo ao espírito da terra que “alimente” aquele propósito lentamente, assim como a árvore nutre-se do solo. A comunicação aqui é lenta, cíclica – o diabo da terra fala no ritmo das estações e das camadas geológicas. Sonhos terrosos costumam envolver cavernas, montanhas, minas subterrâneas ou mesmo antigas cidades enterradas. Esses sonhos podem indicar que o inconsciente está revelando riquezas escondidas ou trazendo à tona conteúdos muito antigos (traumas ancestrais, potencial latente). Encontrar um tesouro enterrado em sonho é um clássico arquétipo da realização interior – e a jornada até ele invariavelmente passa pelo guardião do subterrâneo (às vezes representado por um dragão, uma serpente ou um demônio nas mitologias). Aqui reconhecemos o diabo da terra: guardião dos segredos subterrâneos do nosso ser.

Mitos e práticas espirituais abundam conectando a terra ao aspecto feminino divino (a Mãe Terra) e ao mundo dos mortos. Na bruxaria tradicional, um feiticeiro aprende a ouvir os sussurros dos mortos visitando cemitérios e tocando o solo – pois acreditava-se que espíritos ancestrais residem na terra. O daemon terreno atua também como ponte com os ancestrais e com as memórias do lugar (genius loci). Quando entramos numa floresta secular, sentimos algo antigo nos observando: são as presenças do lugar, manifestações daquele continuum espírito-terra. Astrologicamente, a Terra não tinha um planeta próprio (já que era o ponto de referência), mas signos de terra (Touro, Virgem, Capricórnio) são claramente influenciados por esse elemental: Touro, fixo e fértil; Virgem, analítica e ligada à colheita; Capricórnio, austero e ligado às rochas montanhosas e responsabilidades. Saturno, planeta de terra por excelência, rege a estrutura, o tempo e a morte – faces do elemento terra. Saturno é muitas vezes associado a um arquétipo diabólico (o Ceifeiro, Chronos devorando) por ceifar vidas e impor limites. Vemos então como a imagem do diabo terrestre confunde-se com a figura do Velho Saturno, sério mas sábio, que ensina através de provações materiais e lições de responsabilidade.

Despertar o diabo da terra em si pode significar reconciliar-se com o próprio corpo e com o mundo material. Em vez de ver a matéria como “queda” ou “ilusão a transcender” (visão de certas doutrinas ascéticas), o mago libertário a vê como aliada, sagrada em sua aparente profanidade. É beijar o chão e sentir Deus (ou a Deusa) nele. É dialogar com pedras, ouvir as árvores, sentir-se filho e amante da Natureza. Quando esse elemental está ativo, estamos enraizados no presente, nossas manifestações mágicas ganham solidez. Também aumenta nossa resistência – pessoas bem sintonizadas com terra têm uma calma magnética, dificilmente abalável. O daemon terreno nos empresta sua pele de rocha, para suportarmos adversidades, e sua paciência vegetal, para esperarmos o tempo certo da colheita. Em contrapartida, exige sinceridade e integridade: a terra desnuda as mentiras (afinal, tudo o que é falso desmorona cedo ou tarde, como um prédio sem fundamento). O praticante cujo coração estiver “pesado” demais com maldade ou falsidade talvez não consiga passar pelas provas da terra – lembremos da psicostasia egípcia, em que o coração do falecido era pesado contra uma pena da verdade sobre a balança da Maat, decidindo seu destino. Ser leve como uma pena aqui é paradoxalmente o requisito para atravessar a terra (mundo inferior). Assim, o diabo da terra nos incita à autenticidade e ao equilíbrio entre peso e leveza. Quando o respeitamos, ele não é mais adversário, e sim um gigante gentil, um titã com quem caminhamos lado a lado. O véu da matéria se abre e enxergamos espíritos em todas as formas. Ao final, descobrimos que o “inferno” subterrâneo guardado pelo diabo da terra não era lugar de tortura eterna, mas o útero onde o eu renasce purificado, pronto para florescer na próxima primavera da alma.

Ar: O Diabo dos Ventos e Sussurros Invisíveis

Por fim, ergamos o olhar para o elemento Ar – o sopro invisível, o mensageiro alado entre céu e terra. O diabo do ar é esquivo como um duende do vento, inquieto e sutil. Ele não possui morada fixa: está na brisa leve que traz perfumes ou no furacão que devasta cidades. O Ar sempre foi associado ao espírito em movimento, à comunicação, ao intelecto e à liberdade. Na mitologia suméria, o deus do ar, Enlil, era senhor dos ventos celestiais, e na egípcia, Shu separou o céu da terra com sua força aérea, tornando-se pilar do mundo. O nome hebraico para espírito (ruach) também significa vento; os anjos são frequentemente descritos como ventos ou como tendo asas. Tudo isso aponta para a natureza mediadora do Ar: ele conecta extremos, leva mensagens, inspira canções e profecias. Seu diabo interno, portanto, é um espírito mensageiro, um Mercúrio trickster, às vezes travesso e caótico, às vezes iluminador. Em certas tradições cristãs, fala-se do “príncipe das potestades do ar” referindo-se a espíritos malignos vagando no vento – talvez uma deturpação do antigo conceito pagão de que o ar está repleto de espíritos (bons e maus) e influências astrais. Para nós, o daemon do ar não é “do mal”, mas sim amorfo e mutável, podendo pregar peças ou revelar verdades conforme o vento do destino.

Arquetipicamente, o Ar corresponde à mente, pensamento e criatividade intelectual. É o elemento das ideias claras, da visão panorâmica e também das ilusões do pensamento. Em termos junguianos, relaciona-se à função pensamento (racional) e também à imaginação ativa, dependendo de como se expressa. Fontes ocultistas modernas dizem: “O Ar é o elemento da inteligência, criatividade e começos. Por ser intangível e sem forma permanente, é ativo e masculino, superior aos elementos mais materiais”. Ou seja, o Ar seria leve, ascendente, associado à primavera, ao amanhecer, à juventude e ao otimismo do início. Podemos ver seu diabo interno como um puck jovial saltando com os primeiros raios de Sol, ou como um sábio etéreo que fala com a autoridade de mil ideias. O Ar não tem a paixão do fogo ou a emotividade da água; seu modo de atuação é sutil, quase desapegado – mas poderoso na disseminação. Uma faísca (fogo) isolada é apenas um ponto de luz; para se tornar incêndio, precisa do sopro do ar. Assim, as ideias brilhantes só se espalham se o elemento ar – comunicação, difusão – entrar em cena. O diabo do ar dentro de nós é essa voz mental incessante que corre de pensamento em pensamento, ou o lampejo de inspiração repentina que parece “vir do nada” (na verdade, soprada pelos ventos do inconsciente coletivo ou quem sabe por musas que montam no vento).

No corpo, o ar manifesta-se primariamente na respiração e na troca gasosa que nos mantém vivos. O primeiro ato ao nascer é inspirar ar; o último, expirar. Muitas tradições identificam a alma com o ar que entra e sai – vide o conceito de prana na Índia ou qi na China, o sopro vital. Respirar conscientemente é uma forma de se comunicar com o diabo do ar, pois você sente o poder invisível entrando em você e expandindo seus pulmões, energizando seu sangue com oxigênio. O sistema nervoso também depende de oxigenação adequada; uma mente clara literalmente precisa de ar. Não é por acaso que suspiramos para aliviar tensões ou ofegamos em momentos de ansiedade: o ar reflete e modula nossos estados mentais. Alterar a respiração é alterar a consciência – base de muitas meditações. Quando acalmamos o alento, os pensamentos se aquietam; quando hiperventilamos, a mente dispara em pânico ou excitação. Esse laço indissolúvel significa que o daemon do ar é tanto espírito quanto vento fisiológico. Nos estados alterados, muitas pessoas percebem sensações de leveza, como se fossem feitas de ar, podendo flutuar – isso é o elemento ar tomando proeminência no psiquismo, liberando das âncoras terrenas.

O Ar também se manifesta na voz e no som. Quando falamos ou cantamos, moldamos o ar para carregar significado. Em praticamente todas as cosmogonias, o mundo começa com uma palavra, um som, um verbo divino – ou seja, com a vibração do ar (ou éter, mas transmitido pelo ar). O diabo do ar tem, portanto, algo de mágico cantor. Podemos imaginá-lo como o bardo invisível que inspira poetas e ventríloquos do divino. Em certas culturas, acreditava-se que ouvir o uivo do vento nas montanhas ou nas fendas das portas era ouvir espíritos tentando falar. Muitos xamãs e bruxos relatam que as mensagens dos espíritos lhes chegam como um sussurro no vento, quase imperceptível aos ouvidos comuns. Shakespeare imortalizou isso nas feiticeiras de Macbeth, cujo canto “Fair is foul, and foul is fair: Hover through the fog and filthy air” (Belo é feio, feio é belo: flutuemos no ar brumoso e imundo) enfatiza o ar como meio de feitiçaria e ilusão. Assim, o daemon aéreo é também mestre de truques e ilusões: lembra-nos do ar carregado de glamour das fadas ou das miragens. Ele pode trazer claridade, mas também dispersar a atenção em mil devaneios (a mente aérea, avoada).

Nos rituais, o elemento ar costuma ser representado pelo incenso fumegante, pelo som de um sino ou música, ou por uma pena. A fumaça do incenso que se eleva serpenteando é visível porém intocável – perfeita imagem do espírito do ar. Ao queimar ervas aromáticas, os bruxos acreditam libertar as qualidades espirituais delas no ar para purificar o ambiente e atrair bons espíritos. O diabo do ar aprecia fragrâncias; é quase um dândi invisível que se agrada de perfumes sutis e do belo manejo das palavras. Uma invocação bem ritmada e eloquente num ritual de ar faz toda diferença: é pela palavra mágica entoada com intenção que este espírito se move. Por isso, a oratória e a recitação de encantamentos são atributos do ar. Na magia cerimonial, a arma do ar é a espada ou athame, e sua direção, o Leste (onde nasce o Sol, novo começo). Quem empunha a lâmina do ar deve ter mente afiada; o ar concede discernimento e o poder de banir ilusões com um simples verbo (“Afastem-se!”).

Em astrologia, os signos de Ar (Gêmeos, Libra, Aquário) são intelectuais, sociáveis, idealistas. São regidos por Mercúrio (a mente), Vênus em seu aspecto relacional e Urano (o insight súbito, rajada de vento revolucionária). O Ar se associa ao Leste e à Primavera, a brisa fresca de manhã que simboliza esperança e novidade. Também rege a noção de movimento – transportes, viagens, comércio de ideias. O diabo do ar adora movimento: enquanto o diabo da terra se acomoda preguiçoso numa caverna, o do ar quer voar para ver o que há além do horizonte. Em termos modernos, ele nos tenta com a curiosidade insaciável, o desejo de conhecer de tudo um pouco, mesmo que superficialmente. Se desequilibrado, pode trazer dispersão, instabilidade – mentes “no ar” que não concretizam nada. Em equilíbrio, contudo, é mente superior conectada, capaz de sinapses geniais e de perceber padrões amplos. É o cientista e o mago astrólogo olhando o céu e entendendo leis invisíveis.

Despertar o diabo do ar é cultivar em si a liberdade de pensamento e a conexão com o todo através da mente. Quando ativo, ele pode propiciar experiências de clarividência ou telepatia, pois afinal o ar (e éter) seriam os veículos dessas faculdades. Pode-se sentir um vento súbito na pele sem explicação – quem nunca teve a impressão de uma brisa em um lugar fechado, coincidindo com uma intuição ou presença? Há quem diga que esses são espíritos do ar manifestando-se momentaneamente no plano físico. No grimório da mente, o ar guarda os registros das vozes passadas – alguns acreditam que ondas sonoras ficam impressas no éter e podem ser ouvidas por clariaudiência; daí histórias de médiuns que “captam” vozes antigas em ruínas, carregadas pelo vento do tempo. Fantasia ou não, é poeticamente verdadeiro: o vento que passa entre ruínas pode bem trazer ecos históricos, pois aquele ar já circulou em muitos pulmões ao longo dos séculos. O daemon aéreo tem memória difusa de tudo, e por isso, se dele fazemos um aliado, ele nos sintoniza com uma espécie de “rádio cósmica” de ideias e conhecimentos.

Nos sonhos e visões, o elemento ar aparece como voo ou queda (voar é dominar o ar; cair é ser dominado por ele), como pontes aéreas, pássaros, nuvens, tempestades. Sonhar que está voando livremente pelos céus geralmente indica sensação de poder mental ou libertação de restrições; já sonhar com vendavais ou ser levado pelo vento pode apontar instabilidade, medo de perder o controle ou mensagens urgentes do inconsciente buscando sua atenção (um “vento de mudança” em sua vida). Em relatos místicos, monges e santos dos quais emanava santidade tinham fragrâncias florais no ar ao redor – a chamada osmogenesia. Diz-se que grandes sábios “perfumam” metaforicamente o ambiente com suas qualidades. Isso ilustra o lado luminoso do diabo do ar: ele pode se tornar o gênio inspirador que eleva todos ao redor, trazendo leveza, riso, insight. Afinal, etimologicamente espírito vem do latim spiritus, que quer dizer sopro, vento. Dar espírito a algo é insuflar ar, dar vida.

Assim, no caminho mágico libertário, trabalhar com o ar é buscar conhecimento e conexão mental sem perder a ancoragem ética (pois o ar, sem coração ou corpo, pode tornar-se frio ou ardiloso). É equilibrar a espada afiada com a compaixão do coração (fogo) e a empatia (água) e a sensatez (terra). O daemon aéreo, quando honrado e equilibrado pelos outros, torna-se o grande mensageiro entre todos os planos: leva nossos pedidos ao éter e traz respostas intuídas; corre pelos fios invisíveis que unem as mentes e favorece a comunhão de ideias. Ele é, em essência, um espírito de liberdade. A famosa imagem do demônio Mercúrio (às vezes equiparado a Lúcifer antes da queda, o anjo portador de conhecimento) com asas nos pés exemplifica: o diabo do ar nos convida a voar por conta própria, a pensar por nós mesmos, questionar dogmas (pois o ar não tolera espaços fechados por muito tempo) e rir, sim – rir das certezas excessivamente sólidas. Ele nos lembra que tudo é impermanente como o vento e, portanto, devemos abraçar a mudança intelectual e a leveza de ser. No rastro de seu voo, deixa sabedoria e, às vezes, uma pitada de travessura: a risada do vento nas folhas, que parece alguém escondido gargalhando conosco, compartilhando o segredo de que a existência é um jogo divino e cabe a nós dançar com as brisas do destino.

Conclusão: Magia Elemental Libertária

Percorremos, assim, o círculo dos cinco elementos clássicos – éter, água, fogo, terra e ar – encontrando em cada um o seu diabo arquetípico, essa inteligência oculta e selvagem que anima o elemento e comunica-se com o mago ou a bruxa. Percebe-se que esses “diabos” não são inimigos a serem exorcizados, mas sim forças a serem compreendidas, honradas e canalizadas. Em uma perspectiva libertária da magia elemental, não nos curvamos cegamente a anjos ou deuses padronizados de cada elemento, nem seguimos dogmas rígidos de correspondências; em vez disso, buscamos um relacionamento vivo e direto com as potências da natureza. Cada praticante, por sua sensibilidade única, pode perceber facetas diferentes desses espíritos elementais – e está tudo bem. A magia aqui é uma arte co-criativa: o fogo pode ensinar a um bruxo lições de coragem por meio da dança extática nas chamas, enquanto a outro pode ensinar disciplina em forjar uma espada. Não há regras absolutas além da necessidade de respeito e autenticidade no trato com essas forças.

Notamos também como os elementos se correspondem a dimensões internas do ser – psíquicas, emocionais, físicas. Despertar os “diabos” elementais em si mesmo equivale a despertar partes adormecidas da alma: liberar a intuição do fogo, a empatia da água, a estabilidade da terra, a clareza do ar e a transcendência do éter. O mago que integra todos os elementos torna-se uma figura completa, um Quintessêncio, por assim dizer – lembrando a noção junguiana de individuação, na qual equilibramos as quatro funções (pensamento, sentimento, sensação, intuição) rumo a um Self uno (o éter). Essa integração é um ato profundamente libertador, pois rompe as correntes de qualquer unilateralidade. A pessoa deixa de ser “apenas lógica” ou “apenas emotiva” etc., ganhando fluidez elemental. Em termos esotéricos, é como gravar no próprio espírito o pentagrama equilibrado, símbolo do domínio harmonioso dos elementos pelo espírito livre.

Ao longo do texto, trouxemos referências de mitos antigos, alquimia, psicologia arquetípica, astrologia e poesia visionária. Vê-se que, embora nossa abordagem seja original e não dogmática, ela dialoga com a sabedoria tradicional – porém de forma crítica e criativa. Liberdade não significa ignorância do passado, mas sim capacidade de reinventá-lo. Assim, mencionamos Paracelso e suas ondinas e gnomos, mas não nos prendemos a servi-los como senhores; antes, aprendemos com suas histórias para traçar nossos próprios pactos com os rios e montanhas. Citamos Jung e Hillman para iluminar paralelos psique-elemento, mas permitimo-nos ir além da psicologia, adentrando na mística e na arte. Essa é a beleza da senda esotérica libertária: ela é inclusiva e transdisciplinar, pois reconhece que os elementos permeiam todas as áreas do saber e do viver.

No mundo natural, enxergar cada elemento como um ser vivo e consciente desperta também em nós um senso de reverência ecológica. Não profanamos a terra que tem um diabo guardião, não poluímos as águas que têm espírito, não abusamos do fogo nem do ar. O mago elemental torna-se, inevitavelmente, um guardião da natureza, porque ele ouve as vozes da floresta, do mar, do vento – e essas vozes clamam por equilíbrio e respeito. Em contrapartida, a natureza compartilha seus poderes: pedras e cristais se tornam aliados, plantas revelam propriedades medicinais e mágicas, animais trazem mensagens (afinal, em muitas cosmologias xamânicas, os animais correspondem aos elementos e carregam sua medicina). A magia elemental liberta porque recoloca o humano como parte da teia da vida, não acima nem fora dela. Somos convidados a participar de um sabbat eterno onde salamandras, ondinas, silfos e gnomos dançam juntos – a grande dança dos elementos que mantém o cosmos.

Por fim, ao encarar os elementos como “diabos” interiores, resgatamos também a ideia de que a sombra (o não convencional, o instintivo, o indomado) contém chaves para a totalidade. Em tempos em que muitas espiritualidades tendem a excessos de “luz” unilateral, este ensaio ressoa a antiga sabedoria dos alquimistas: In Sterquiliniis Invenitur – “no esterco (matéria vil) encontra-se o ouro”. Ou seja, é nas forças brutas, cruas e por vezes sombrias da natureza e de nós mesmos que acharemos o poder e a gnose necessários. Os diabos elementais nos revelam feitiços, magia, espíritos e deuses – se estivermos dispostos a interagir de igual para igual, sem medo, porém com humildade.

Que este texto sirva como inspiração para aqueles que desejam trilhar um caminho mágico original e poético. Sinta o vento sussurrar seu nome e leve consigo uma mensagem; perceba a chama dançar e enxergue nela um rosto ancestral; deixe a água do rio tocar seus pés e conte-lhe seus segredos; deite no chão da mata e ouça o coração da terra batendo lento; contemple o céu estrelado e perceba no silêncio etéreo uma voz de infinito. Em cada um desses momentos, um diabo elemental poderá estar tentando falar com você. Se falar, escute – escute com todo seu ser. Nas entrelinhas desse diálogo oculto, nascem as verdadeiras bruxarias e milagres. Pois, em essência, magia elemental é relacionamento: um caso de amor entre o ser humano e o universo. E quando nos apaixonamos pelos elementos – pelos diabos e anjos neles contidos – descobrimos, maravilhados, que eles também estavam esperando por nosso olhar, para se refletirem em nossa consciência. Assim, completamos o grande círculo: o mago e os elementos tornam-se co-criadores, cúmplices na arte de tecer realidade, livres, selvagens e sagrados, cada qual dançando seu papel na eterna ciranda dos elementos.

Referências Conectadas:

  • Blake, William – The Marriage of Heaven and Hell, especialmente os Provérbios do Inferno (“Energy is Eternal Delight”).

  • Paracelso (séc. XVI) – doutrina dos elementais da natureza (gnomos, ondinas, silfos, salamandras) e a visão de dupla composição dos elementos (física e espiritual).

  • Jung, C. G. – teoria das quatro funções psíquicas e correspondência simbólica com os elementos; simbolismo da água como inconsciente.

  • Alquimia – conceito de éter/quintessência como luz vital do universo; operações alquímicas ligadas aos elementos (solutio, calcinatio etc.).

  • Tradição hermética/Golden Dawn – correspondências clássicas dos elementos com direções, ferramentas e entidades (por ex., arcanjos dos elementos).

  • Mitologia comparada – cosmogonias envolvendo elementos: Tiamat e o mar primordial; Enlil (deus do ar) e Shu (deus do ar) separando céu e terra; Prometeu e o roubo do fogo; Gaia/Deméter e Hades na terra.

  • Ocultismo moderno – descrições populares dos elementos e suas qualidades em sites e enciclopédias esotéricas, indicando visão contemporânea das correlações (emoção/água, intelecto/ar, etc.).

  • Visão poética – referências implícitas a autores visionários como Shakespeare (elementos em Macbeth), ou imagens do folclore (fênix, salamandras, fadas dos ventos) que permeiam a abordagem simbólica.

Comentários