Austin Osman Spare e o Erotismo como Ferramenta de Magia


Em meio às brumas do ocultismo do início do século XX, onde ordens esotéricas disputavam autoridade sobre os mistérios, surge uma figura solitária, quase espectral: Austin Osman Spare (1886–1956). Artista visionário, ocultista iconoclasta e místico urbano, Spare desafiou os dogmas de sua época com uma abordagem radicalmente pessoal da magia. Afastando-se da pompa cerimonial da Golden Dawn ou das hierarquias da Ordo Templi Orientis, ele teceu uma via própria – visceral, sensual e profundamente ligada ao inconsciente. E no cerne desse caminho, o erotismo não era mero deleite carnal, mas chave de ignição para a vontade mágica.

A Magia como Expressão do Inconsciente

Influenciado por Nietzsche, Freud, e também pelas tradições orientais e pelo misticismo pré-cristão, Spare concebia a magia não como um sistema externo, mas como arte da autoexpressão simbólica. O seu conceito central era o do Zos Kia Cultus, uma filosofia que une corpo (Zos) e vontade ou essência mágica (Kia). Para ele, o corpo era templo, pincel e portal – e o desejo, em sua forma mais crua e primal, era o combustível da vontade mágica.

“O desejo é sagrado e deve ser nutrido e exaltado”, escreveu ele em The Book of Pleasure (Self-Love): The Psychology of Ecstasy (1913), sua obra mais significativa. Nesse livro, Spare descreve o ato mágico como um mergulho consciente no inconsciente, onde símbolos, gestos e imagens pessoais substituem rituais engessados. É nesse território que o erotismo floresce como linguagem da alma.

Erotismo, Autoerotismo e Sigilos

Spare foi um dos primeiros ocultistas modernos a sistematizar o uso de sigilos – símbolos condensadores de desejo. No entanto, diferentemente dos talismãs cerimoniais, seus sigilos eram criados a partir de frases de vontade reduzidas graficamente e depois lançados ao inconsciente por meio de estados alterados de consciência. Entre esses estados, o êxtase sexual – especialmente o orgasmo solitário – era central.

Aqui, vemos o que muitos chamariam de masturbação ritualística, mas para Spare era algo mais profundo: o ato erótico era uma oferenda ao próprio inconsciente, o qual, segundo ele, detém o verdadeiro poder mágico. Ao atingir o clímax, o sigilo era “carregado” e lançado ao abismo do self, onde operaria por vias ocultas até sua manifestação.

Esse uso mágico do erotismo não se restringia ao autoerotismo. O artista também experimentava o sexo com outros como veículo de gnose, muitas vezes incorporando isso em sua arte. Suas ilustrações – corpos distorcidos, criaturas híbridas, olhares febris – são testemunhos visuais dessa fusão entre erotismo, magia e inconsciente. O prazer era uma forma de invocação, o corpo um altar de forças impessoais e transgressoras.

Magia do Caos: A Herança Espontânea

Embora o termo "Magia do Caos" só tenha sido cunhado décadas depois por Peter J. Carroll e Ray Sherwin nos anos 1970-80, as sementes estavam no solo fértil das ideias de Spare. A valorização da experiência direta, o desprezo por dogmas e a ênfase na crença como ferramenta moldável (e não como verdade absoluta) são todos ecos diretos de sua obra.

Carroll, em Liber Null & Psychonaut, reconhece Spare como uma das maiores influências da Magia do Caos, destacando especialmente o uso de sigilos e a noção de que o inconsciente é o agente real da mudança mágica. Mas onde Carroll sistematizou e simplificou, Spare mergulhou no caos estético e sensual da alma. Para ele, não havia separação entre arte, magia e desejo.

Erotismo como Transgressão e Libertação

A relação entre erotismo e magia sempre foi tensa e subversiva. O cristianismo institucional condenou o corpo e o prazer como pecados, confinando o divino ao celibato e à mortificação. Spare, ao contrário, celebrava o corpo como fonte de sabedoria oculta. O prazer, quando ritualizado, tornava-se instrumento de transcendência.

Esse ponto de vista tem paralelos com cultos dionisíacos, tantrismo oriental, práticas tântricas gnósticas e mesmo com certas correntes da Kimbanda afro-brasileira, onde o prazer não é negação do divino, mas sua encarnação mais vibrante.

Conclusão: A Estética do Desejo como Magia Viva

Austin Osman Spare não criou um sistema, mas um caminho secreto entre carne, sombra e estrela. Sua magia era crua, pessoal e selvagem – como o próprio desejo humano. Em um tempo em que a espiritualidade era engessada em rituais e ordens, ele apontou para dentro, onde os olhos do desejo brilham como oráculos.

Ao compreender o erotismo como ferramenta mágica, Spare antecipou debates contemporâneos sobre magia corporal, magia sexual queer, e libertação do inconsciente por meio do prazer. Seu legado vive não apenas nos grimórios da Magia do Caos, mas nas pulsões de cada mago que ousa transformar o orgasmo em conjuro, e o corpo em templo de criação.


Referências Bibliográficas:

  • Spare, Austin Osman. The Book of Pleasure (Self-Love): The Psychology of Ecstasy. Londres: 1913.

  • Carroll, Peter J. Liber Null & Psychonaut. Weiser Books, 1987.

  • Grant, Kenneth. Zos Speaks!: Encounters with Austin Osman Spare. Fulgur Press, 1998.

  • Flowers, Stephen E. Lords of the Left-Hand Path. Inner Traditions, 2012.

  • Hine, Phil. Condensed Chaos: An Introduction to Chaos Magic. New Falcon, 1995.

  • Urban, Hugh B. Magia Sexualis: Sex, Magic, and Liberation in Modern Western Esotericism. University of California Press, 2006.


Por Zahir Almyst

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